sexta-feira, 25 de março de 2011

Missão ‘Ad Gentes’


Deixa a tua terra...

Deixar tudo e seguir...é perfeição’ diz o P. António Vieira num dos sermões sobre a Vida Consagrada. Mas, podemos ‘deixar tudo, seguir Cristo’ sem ‘devorar quilómetros’, como bem lembra D. Hélder Câmara num dos poemas mais bonitos que eu conheço sobre a Missão. A entrega radical de uma vida ao serviço dos outros (em especial dos mais pobres e excluídos) é característica comum a todos os consagrados, diria mesmo que é uma imagem de marca da identidade cristã. Mas o ‘deixar a terra’ (pedido feito a Abraão, cujo ‘sim’ mudou a história da humanidade) tem consequências muito próprias que definem a Missão ‘Ad Gentes’ lá fora das fronteiras da terra que nos viu nascer e crescer e que constituem o nosso cantinho de conforto e segurança.

Dos Homens e dos Deuses....


Vi três vezes e tenho organizado cine-fóruns a partir do filme ‘Dos Homens e dos Deuses’. Para quem o não viu (garanto que perdeu muito!), este filme tenta transmitir os últimos tempos de uma comunidade de Monges Trapistas no interior da Argélia, num contexto muçulmano, em tempo de luta aberta entre grupos extremistas e um governo corrupto. Eles foram quase todos assassinados, após receberem muitas ameaças e terem optado ficar com o povo até ao fim. Ora, a tomada de decisão de ‘partir’ ou ‘ficar scom o povo’, é um dos momentos fortes do filme. O que o povo e os monges vão dizendo mostram que a decisão de ‘deixar a terra’ tem consequências enormes. As pessoas são enviadas para contextos onde a cultura, a situação económica e social, a vivência dos direitos humanos até a religião podem ser muitos diferentes dos que viviam nas suas terras de origem. Esta situação exige muita força e muita flexibilidade (abertura) e muita coragem... ou melhor, exige uma Fé à prova de tudo. A decisão que os monges tomam de ficar com o povo (a determinada altura, uma senhora muçulmana diz a dois dos monges que o mosteiro para o povo é o ramo da árvore onde as pessoas são os pássaros: se os monges forem embora, o povo não tem onde poisar e se proteger!) é dura, dói muito mas mostra o sentido de uma consagração e de uma Missão fora de portas. A ousadia (que só a força do Espírito oferece) de partir e ficar quando todas as seguranças desapareceram e nos faltam os apoios das raízes, mostra a diferença entre o ‘estar fora e longe’ e o fazer missão ‘ao pé da porta’.

Fora da nossa área de conforto, sentimo-nos mais frágeis, mais humildes, mais dependentes dos outros. Como que a terra nos foge de debaixo dos pés. Em alguns contextos de pobreza e violência, sentimo-nos ameaçados e sem outra segurança que não seja a Deus. É a Fé que nos diz que o lugar mais seguro do mundo é aquele onde Deus nos quer e, aconteça o que acontecer, estamos onde devemos estar.

Leigos fora de portas...

O partilhar a vida do povo (à luz dos princípios propostos pelo Concílio Vaticano II, segundo os quais ‘as alegrias e tristezas, as angústias e esperanças’ das pessoas são as da Igreja), quando acontece fora de casa exige preparação, capacidade de encaixe e de sofrimento, abertura e dedicação extrema. É por isso que na formação de Missionários professos (Padres, irmãs e Irmãos de Institutos) e de Leigos (Voluntários Missionários) há que tomar muito a sério a avaliação do perfil de cada um(a), bem como uma preparação que ajude a dar raízes à capacidade de desenraizamento cultural, climático, eclesial e social. A Teologia da Missão (com uma grande insistência nas questões relativas á Inculturação e ao Diálogo Ecuménico e Inter-Religioso) constitui uma ajuda preciosa para quem parte.

A minha experiência...


A minha experiência missionária por terras de Angola durante a guerra civil foi muito semelhante à que os Monges Trapistas viveram por terras das montanhas do Atlas, no interior pobre e violento da Argélia. Há momentos em que temos que decidir entra a segurança de partir e o risco de ficar. Aconteceu-me. Nessa hora, os sentimentos estão confusos, pois o ‘partir’ salva a pele de quem foge, mas complica ainda mais a vida dos que ficam. Vi esse drama também muito bem retratado no filme ‘Hotel Rwanda’ sobre os tempos de genocídio que vitimaram milhões de pessoas na guerra entre Hutus e Tutsis. Ora, decidir a quente não dá bom resultado. Fugir (porque se é estrangeiro), piorando a situação dos que ficam (porque são nacionais) não faz qualquer sentido. Ficar foi a opção dos missionários estrangeiros no Huambo, como foi a dos Monges Trapistas na Argélia. Estes, pagaram quase todos com a morte a decisão de ficar com o povo, em nome de Deus. Os Missionários no Huambo tiveram sortes diferentes: uns morreram, outros ficaram feridos e a outros não aconteceu nada de muito grave, como foi o meu caso.

Tony Neves, missionário espiritano in Agência Ecclesia